Não te denuncias em mim.


Não te denuncias em mim, abuso. Abuso esse que sobe das mãos cálidas aos braços vascularizados em beleza em prol do bem estar. Abuso das palavras, meias palavras, completas palavras sensatas de ódio, alegria e dor. 
Não me denuncias em ti os gritos de libertação, as tentativas de ir embora e a eterna busca e desbusca de motivos a ficar. Separam os homens as palavras certas e erradas, assim como os momentos e a alma pálida e a quem a cada um melhor se servirá. 
No desdém do tempo, aquele que nunca dorme e tudo acaba e tudo inova, segue-se a carreata incólume, desce e sobe as ruas estreitas das vielas do sentimento, captando a complexidade dos seres a eterna, sempre eterna, contradição humana de Machado. Tais coisas carnais e abstratas, combinadas ao seco do deserto de um ser que a muito andou a procura do oásis em que pudesse banhar a si e alma, conectadas ao cerco magnético do outro ele nunca saberia identificar se o que lhe foi dado era a realidade ou uma simples miragem por si mesmo criada.
Muitos na rua, aqueles que passamos de encontro quando andamos, vivem das miragens. Identificar o oásis como verossímil é o carma sobre o carma. Transforma-se em dharma para que se complete o ciclo. 
A alma nunca pede um acalento mais do que precisas, mas entenda, que por vezes passar por paisagens bonitas com desculpa de acalmar o espírito se torna vício, e tudo o que é em excesso igualmente mata. 
Os mundos aos quais pertencemos, as diversas esferas de relações únicas que construímos são nada mais, nada menos, que antessalas. Tais lugarejos de rostos conhecidos que nos fazem ver o mundo como a mesma noz que dá-se a volta com um passo, mas também aquela que parece infinita jornada solitária, que não queremos que acabe, visto que buscamos as coisas que perpassam o tangível e a carne. 
Não te digo que é errado que transcendeis, não. Busca-te a iluminação barata ou cara, como desejais, mas não te percas nisso. No terreno também há seus prazeres e deleites e evoluções. Já se cresce em espirito só por estar vivo, não jogue fora o que lhe pertence. 
Nos abusos de origem primeva, assim como os citei, são aqueles excessos sem desculpa. A saudade prolongada por orgulho, a ruptura causada pelo acúmulo do não ceder. Estes abusos, perdidos e oriundos talvez de onde ninguém sabe quem; desenham linhas, aquelas de malabaristas nas quais nos arriscamos a passar. 
A planta que floresce cálida em seu pouco espaço, respeita ao próximo em seu aconchegar. E pede uno, due, tre, quattro vezes para que possa passar. Não se desumaniza coisa alguma caso queira chegar em algum lugar. 
Quando me faltam as palavras da boca, sobram aquelas que me transbordam os dedos e logo sento e escrevo e flui ali toda minha aflição particular. Acontece assim com todos os bons poetas e mesmo que eu não esteja junta deles porque falta-me o cacife e a experiência combinado a paciência de envelhecer e assim ganhar, me aproprio da dor poética, por vezes, desta vez somente para também abusar.
Abusar das palavras, meias palavras, completas palavras sensatas de ódio, alegria e dor. 

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